segunda-feira, 12 de abril de 2010

Língua portuguesa

Encontro reúne intelectuais para discutir valorização da língua portuguesa

Izabel Toscano

Publicação: 30/03/2010 09:16 Atualização: 30/03/2010 09:30

Que Brasil, Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, Portugal, São Tomé e Príncipe e Timor-Leste são países unificados pela cultura e pela língua portuguesa — apesar da diferença geográfica e de sotaque — já é sabido. Mas que o português gera tanta curiosidade fora das fronteiras desses países pode parecer uma surpresa.

Pois, no último fim de semana, alemães, franceses, americanos, africanos e latino-americanos passaram duas tardes falando e pensando a língua portuguesa. Com deslizes e gafes previsíveis — e que muitas vezes geraram cenas engraçadas — gente dos quatro cantos do mundo impressionou os brasilienses com uma pronúncia dedicada e, em muitos casos, perfeita. Tanto que foi desnecessária a tradução simultânea, comum em eventos deste porte.

Na plateia, estudiosos, professores, alunos e gente curiosa. Nas mesas de discussão, escritores, críticos e acadêmicos daqui e do mundo. Todos reunidos — no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB) — durante o Encontro Literário da I Conferência Internacional sobre o Futuro da Língua Portuguesa no Sistema Mundial. O objetivo: refletir sobre os desafios e os avanços da língua num contexto cultural já que, hoje, cerca de 230 milhões de pessoas falam português no mundo.

“O engraçado é que a pronúncia às vezes nos faz entender algo diferente. “Fascínio” vira “faxina”, na fala dos portugueses, brincou a professora Alessandra Morais, 35 anos. “É interessante vir a um encontro assim justamente para a gente ver as diferentes nuances da língua”, avaliou o servidor público João Junqueira da Silva, 28 anos.

Pois, se há fronteira entre os países e a própria língua, muitos concordam que ela está mais fluida. “Em Londres, o português é uma das línguas mais ouvidas no dia a dia”, afirmou o tradutor inglês David Treece.



Para a maioria dos especialistas, uma das formas desse intercâmbio entre o português e outros países é a música. “Há pessoas que se interessam pelo português por causa da música brasileira, assim como os jovens se interessam pelo inglês por causa do rock”, avaliou o poeta Antonio Cícero. “Caetano Veloso e Gilberto Gil, por exemplo, foram importantes na educação sentimental dos argentinos. A música continua sendo o maior difusor da língua brasileira”, acrescentou a tradutora argentina Florência Garramuño.

Demanda
E foi a tradução literária outro ponto de destaque no encontro. Para a tradutora Patrícia Vieira, é a relação afetiva entre a pessoa e o país que gera uma maior demanda por conhecê-la. “Para quem já teve algum contato com a língua, a tradução abre novas portas”, acredita.

O alemão Berthold Zilly impressionou com uma pronúncia beirando a perfeição. Tradutor de livros clássicos da literatura brasileira, ele lembrou que, lá fora, o Brasil está em evidência: “Graciliano Ramos e Machado de Assis, por exemplo, estão esgotados na Alemanha. E já existe uma negociação para que, em 2013, o Brasil seja o tema central da Feira do Livro em Frankfurt.”

A tradução, o mercado, a convivência com outras línguas, a inserção na internet e a música foram temas debatidos em seis mesas durante os dois dias — e despertaram para a valorização da língua. “Deveria ser um evento mais frequente. Mas o Brasil não se preocupava muito com esse assunto. Hoje tem dado mais importância à língua. A reunião de países que falam o mesmo idioma num único lugar é importante”, comentou o poeta Antonio Cícero.

Para o poeta Régis Bonvicino, a dificuldade em tornar encontros como esse mais habituais ainda reside no distanciamento histórico entre os países. “E também o provincianismo e o autoisolamento brasileiro que é grande. Temos uma abertura para a indústria cultural, mas somos fechados para a cultura erudita”, disse.

“Portugal é parecido com o Brasil. Lá ainda resiste um deslumbramento com relação ao estrangeiro, um sentimento de que o português é de Portugal. Acho que, por isso, esse encontro se torna algo tão extraordinário”, acrescentou o português e professor da Universidade Nova de Lisboa, Abel Barros Baptista.


OUTRAS LÍNGUAS
A convivência entre a língua portuguesa e as nativas foi tão polêmica que ultrapassou o tempo estabelecido. Mas todos concordaram que, apesar de ter sido imposta, a língua portuguesa acabou se incorporando positivamente aos países. Por duas horas, a poetisa guineense Odete Semedo intermediou a conversa entre o escritor Luis Cardoso de Noronha (Timor-Leste), a professora Carmen Tindó, o jovem escritor Ondjaki (Angola) e o professor Waldemar Ferreira Netto. “O português entrou na maioria dos países africanos pela colonização. Mas, após décadas, a língua se reinventou e tornou-se deles e nossa por direito. Os escritores fizeram uma revolução dentro da própria língua do colonizador, africanizando-a por dentro”, resumiu Carmen Tindó. Para Ondjaki (maior expressão da nova geração de escritores de Angola), o grande desafio é preservar as línguas pátrias. “O português é mais falado nas cidades. As línguas africanas ficaram no interior. Aprendemos o inglês desde crianças, mas deveríamos ter a possibilidade de aprender nossas línguas nacionais. É certo que existe uma evolução da língua; dizem que uma prevalece e as outras acabam desaparecendo. Mas não tem que ser assim”, disse ele.

A tradução abrindo caminhos

A primeira mesa de debates reuniu tradutores de peso. Bryan McCan, dos Estados Unidos, mediou a conversa entre Berthold Zilly (Alemanha), Florencia Garramuño (Argentina), Patrícia Vieira (Portugal) e Patrick Quillier (França). A reedição de livros já traduzidos e esgotados nos países, a tradução de textos teóricos e a maior circulação de produções brasileiras nos mercados estrangeiros permearam as reflexões durante 1h30.

A maioria dos tradutores reconheceu que a demanda é maior em relação a clássicos brasileiros como os de Machado de Assis e Guimarães Rosa. E reforçam que a tradução é fundamental como instrumento de ensino. “Ela ajuda os estudantes porque transmite a eles a riqueza da língua. Por isso é preciso a tradução de mais ensaios teóricos, já que há uma ideia de que o português é um língua apenas de escritores e não de pensadores da literatura”, pontuou Patrícia Vieira. “Temos que defender o que ainda não é canônico e que vem também da periferia”, completou Berthold Zilly.



A última mesa de debates — a mais concorrida pelo público — girou em torno de literatura e música. O português Abel Barros Baptista coordenou a conversa entre o poeta e compositor Antonio Cícero, o professor e tradutor David Treece (Reino Unido), a produtora e diretora de cinema Helena Solberg e o músico e escritor Hortencio Langa (Moçambique).

“O forte no Brasil é a cultura oral e não a letrada. E a música permitiu uma solução, com músicos que escrevem belas letras”, iniciou Helena Solberg. Para David Treece, fora do Brasil se conhece a música não pela qualidade de seus compositores, o que é uma falha. “Mas é a canção que nos dá a possibilidade de habitar e vivenciar outra cultura. O primeiro passo para esse diálogo linguístico ocorre por meio da música”, acredita.

O debate também gerou discussão entre o que é ou não poesia dentro da música brasileira. O que levou a um embate entre o poeta Régis Bonvicino, que estava na plateia, e Antonio Cícero. Este último resumiu: “Não se pode determinar isso. Uma boa letra de música é possivelmente (e não necessariamente) um bom poema. Exemplo do trabalho de Caetano Veloso, que tem letras que podem ser lidas como poema.” Bonvicino foi contra, iniciando uma discussão sobre a qualidade poética de Caetano. Com a polêmica, a mesa de debates, que já ultrapassava 1h30, foi encerrada. “Vamos promover as olimpíadas de letrismo contra os poetas”, ironizou Abel Baptista.

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Publicado no jornal Correio Braziliense em 30 de março de 2010.

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