"É consensual que (as) poucas leis brasileiras..."
Tenho a impressão de que muita gente teve dificuldade para perceber que as duas afirmações são equivalentes |
NA COLUNA DA SEMANA passada, ao analisar a(s) bendita(s) frase(s) que encerra(m) as peças publicitárias de medicamentos ("A/Ao/Se persistirem os sintomas, o médico..."), afirmei, em tom meio jocoso, que "não entendo bem por que "o médico" e não "um médico", mas isso é outra história".
Na segunda-feira, a professora Priscila Figueiredo, que trabalha comigo na TV Cultura, disse-me que lera a coluna e, também em tom meio jocoso, afirmou que o uso do artigo "o" em "o médico deverá ser consultado" lhe dá a impressão de volta aos velhos tempos, como se o médico fosse uma espécie de pajé, o único da tribo. Eu complementei o que ela disse com a informação de que em muitos países existe a figura do médico (do serviço público) de família, o que torna razoável o uso do artigo definido. Por aqui, parece melhor optar mesmo pelo indefinido ("um médico deverá ser...").
Pois bem. Revirando a memória, lembrei-me de uma questão do último vestibular do Ibmec-SP, que, de forma muito interessante, aborda a questão do emprego do artigo definido. O enunciado da questão era este: "Compare estes períodos: I - É consensual que as poucas leis brasileiras sobre crimes ambientais não funcionam. II - É consensual que poucas leis brasileiras sobre crimes ambientais não funcionam".
Vou poupar o leitor do desfile das cinco opções (tratava-se de um teste de múltipla escolha). Vou direto ao ponto: o prezado leitor já sabe que diferença existe entre as frases? Já sabe onde está o xis do problema?
Vamos lá. Na primeira frase (em que há o artigo definido "as" antes de "poucas leis brasileiras"), afirma-se que no Brasil há poucas leis sobre crimes ambientais e que nenhuma funciona. Na segunda, afirma-se mais ou menos o contrário, ou seja, que, no geral, as leis brasileiras sobre crimes ambientais funcionam -só algumas (poucas) não funcionam.
No teste do Ibmec, a resposta correta era esta: "A presença do artigo definido, na frase I, permite inferir que a afirmação contém uma crítica à eficiência das leis ambientais".
Tenho a impressão de que muita gente teve dificuldade para perceber que as duas afirmações são equivalentes, ou seja, que o texto da resposta é uma "tradução" da frase I. Um dos empecilhos pode ser o vocabulário (o verbo "inferir", por exemplo, que significa "deduzir", "concluir").
Outro empecilho pode estar na própria capacidade do candidato de entender que, se na frase I se diz que "as poucas leis sobre crimes ambientais não funcionam", diz-se que as leis são poucas e não funcionam. Mutatis mutandis, os casos vistos hoje lembram outro, clássico, já abordado aqui algumas vezes -o das orações introduzidas pelo pronome relativo "que". Para refrescar a memória, leia estas duas frases: "A partir da semana que vem, os brasileiros que gostam de literatura poderão frequentar a mais nova sala de leitura do país, localizada..."; "A partir da semana que vem, os brasileiros, que gostam de literatura, poderão frequentar a...".
Pois bem. Qual é mesmo a diferença entre as duas construções? Se o caro leitor leu com atenção, percebeu que, na segunda construção, a oração "que gostam de literatura" vem entre vírgulas, certo?
Como o espaço está no fim, vou direto ao ponto: as vírgulas são usadas quando se quer generalizar a afirmação. Na segunda, portanto, afirma-se que, em geral, os brasileiros gostam de literatura.
Na primeira construção, sem as vírgulas, restringe-se o universo dos seres mencionados (os brasileiros, no caso). Moral da história: sem as vírgulas, afirma-se que essa parcela dos brasileiros (a parcela que gosta de literatura) poderá frequentar a mais nova sala... É isso.
inculta@uol.com.brNa segunda-feira, a professora Priscila Figueiredo, que trabalha comigo na TV Cultura, disse-me que lera a coluna e, também em tom meio jocoso, afirmou que o uso do artigo "o" em "o médico deverá ser consultado" lhe dá a impressão de volta aos velhos tempos, como se o médico fosse uma espécie de pajé, o único da tribo. Eu complementei o que ela disse com a informação de que em muitos países existe a figura do médico (do serviço público) de família, o que torna razoável o uso do artigo definido. Por aqui, parece melhor optar mesmo pelo indefinido ("um médico deverá ser...").
Pois bem. Revirando a memória, lembrei-me de uma questão do último vestibular do Ibmec-SP, que, de forma muito interessante, aborda a questão do emprego do artigo definido. O enunciado da questão era este: "Compare estes períodos: I - É consensual que as poucas leis brasileiras sobre crimes ambientais não funcionam. II - É consensual que poucas leis brasileiras sobre crimes ambientais não funcionam".
Vou poupar o leitor do desfile das cinco opções (tratava-se de um teste de múltipla escolha). Vou direto ao ponto: o prezado leitor já sabe que diferença existe entre as frases? Já sabe onde está o xis do problema?
Vamos lá. Na primeira frase (em que há o artigo definido "as" antes de "poucas leis brasileiras"), afirma-se que no Brasil há poucas leis sobre crimes ambientais e que nenhuma funciona. Na segunda, afirma-se mais ou menos o contrário, ou seja, que, no geral, as leis brasileiras sobre crimes ambientais funcionam -só algumas (poucas) não funcionam.
No teste do Ibmec, a resposta correta era esta: "A presença do artigo definido, na frase I, permite inferir que a afirmação contém uma crítica à eficiência das leis ambientais".
Tenho a impressão de que muita gente teve dificuldade para perceber que as duas afirmações são equivalentes, ou seja, que o texto da resposta é uma "tradução" da frase I. Um dos empecilhos pode ser o vocabulário (o verbo "inferir", por exemplo, que significa "deduzir", "concluir").
Outro empecilho pode estar na própria capacidade do candidato de entender que, se na frase I se diz que "as poucas leis sobre crimes ambientais não funcionam", diz-se que as leis são poucas e não funcionam. Mutatis mutandis, os casos vistos hoje lembram outro, clássico, já abordado aqui algumas vezes -o das orações introduzidas pelo pronome relativo "que". Para refrescar a memória, leia estas duas frases: "A partir da semana que vem, os brasileiros que gostam de literatura poderão frequentar a mais nova sala de leitura do país, localizada..."; "A partir da semana que vem, os brasileiros, que gostam de literatura, poderão frequentar a...".
Pois bem. Qual é mesmo a diferença entre as duas construções? Se o caro leitor leu com atenção, percebeu que, na segunda construção, a oração "que gostam de literatura" vem entre vírgulas, certo?
Como o espaço está no fim, vou direto ao ponto: as vírgulas são usadas quando se quer generalizar a afirmação. Na segunda, portanto, afirma-se que, em geral, os brasileiros gostam de literatura.
Na primeira construção, sem as vírgulas, restringe-se o universo dos seres mencionados (os brasileiros, no caso). Moral da história: sem as vírgulas, afirma-se que essa parcela dos brasileiros (a parcela que gosta de literatura) poderá frequentar a mais nova sala... É isso.
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Publicado no jornal Folha de S. Paulo em 08 de abril de 2010.
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