quarta-feira, 22 de abril de 2009

Reforma ortográfica

Texto publicado no jornal Folha de S. Paulo, em 22 de abril de 2009, pág. A3.

Reforma ortográfica: mais custos que benefícios

THAÍS NICOLETI DE CAMARGO


A reforma ortográfica apoia-se num documento lacunar e numa obra de referência marcada pela hesitação e pela inconstância de critérios

MUITO JÁ se falou sobre o Novo Acordo Ortográfico. A frouxidão de argumentos que embasaram a sua implantação, como a suposta necessidade de unificar a grafia da língua portuguesa nos países em que é o idioma oficial, em favor do estímulo ao intercâmbio cultural entre as nações lusófonas e da simplificação de documentos oficiais, já foi suficientemente denunciada.
É certo que o intercâmbio cultural entre os países da chamada "lusofonia" é algo positivo, mas o que pode fomentá-lo são antes políticas de incentivo que a supressão de hifens ou de acentos, cujo resultado prático é apenas anular diferenças sutis que nunca impediram a compreensão dos textos escritos do lado de cá ou do lado de lá do Atlântico.
Se o uso do vocabulário e das estruturas sintáticas, os diferentes significados que alguns termos assumem em cada país, o leque de referências culturais que dão à língua sua feição local, para não falar na concorrência de outros idiomas (no caso das nações africanas e do Timor Leste), são obstáculos relativamente pequenos ao intercâmbio cultural, que dizer de pormenores como hifens e acentos?
A ideia de unificação, que produziu um discurso politicamente positivo em torno do assunto, além de não ter utilidade prática, gera vultoso gasto de energia e de recursos, que bem poderiam ser empregados no estimulo à educação e à cultura.
Não bastasse a inconsequência do projeto em si, o texto que o tornou oficial é tão lacunar e ambíguo que desafiou os estudiosos do idioma tanto no Brasil como em Portugal, fato que levou à produção de dicionários com grandes discrepâncias entre si.
Faltava uma obra de referência, que estabelecesse a grafia das palavras, regularizando os pontos obscuros do texto oficial. Esperava-se que essa obra fosse concebida em conjunto pelos países signatários do Acordo, como fruto de um debate no âmbito do propalado projeto de unificação.
No lugar disso, a ABL (Academia Brasileira de Letras) tomou a dianteira do empreendimento e confeccionou o "Volp" ("Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa"). Em lugar da solução dos pontos ambíguos do texto, o que se viu foi um misto de inobservância de princípios claramente propostos no documento oficial com hesitação entre o novo e o antigo, redundando, em muitos dos casos, em escolhas aparentemente aleatórias.
Se a ABL entendeu que poderia suprimir o hífen de formas como "co-herdar" e "co-herdeiro", em desacordo com o texto oficial, talvez em nome da simplificação, por que esse princípio não presidiu as demais escolhas?
Para ficar num exemplo gritante, por que transformar o verbo "sotopor" em "soto-pôr"? Está no texto oficial, mas isso não parece ser razão suficiente para a ABL. Pior que desmontar uma aglutinação, acrescendo-a de hífen e acento diferencial, talvez seja o fato de que as formas conjugadas do verbo não seguem a grafia do infinitivo (o "Volp" registra "sotoposto").
Ainda pior que isso é a hesitação: criaram-se grafias duplas ("sub-humano" e "subumano"; "ab-rupto" e "abrupto" e até "prerrequisito" e "pré-requisito", entre muitas outras) sem um critério seguro que as afiançasse. A interpretação do sexto artigo da Base XV do Acordo transformou substantivos compostos em locuções por obra da supressão sistemática dos hifens. As exceções, agrupadas sob a rubrica "consagradas pelo uso", são apenas sete no documento oficial, o que, por si só, já dá a medida do absurdo. O conceito é por demais vago, tanto que não garantiu a manutenção pura e simples da grafia "abrupto", esta sim consagrada pelo uso.
A supressão do hífen que separava a forma prefixal "não-" de substantivos e adjetivos não é um recurso facilitador. Diante dos substantivos, não havia dúvida quanto ao seu emprego ("não-índio", "não-agressão" etc.). A distinção entre "dia a dia" (locução adverbial) e "dia-a-dia" (substantivo composto) era útil, afinal, o sistema de distinções favorece a compreensão da gramática da língua.
Melhor trabalho teria sido a regularização do hífen com "bem" e "mal", nem sempre percebidos como prefixos. Louvável ainda teria sido o registro dos principais estrangeirismos em uso na língua, respeitando grafias consagradas em seu idioma de origem, dado que hoje não há tendência ao aportuguesamento.
Sem um objetivo claro e com severas implicações financeiras, a reforma ortográfica apoia-se num documento lacunar e numa obra de referência marcada pela hesitação e pela inconstância nos critérios de regularização. Fica a incômoda impressão de que os custos serão bem maiores que os supostos benefícios.


THAÍS NICOLETI DE CAMARGO , professora de português formada pela USP, é consultora de língua portuguesa do Grupo Folha-UOL. É autora dos livros "Redação Linha a Linha" (Publifolha) e "Uso da Vírgula" (Manole).

quinta-feira, 9 de abril de 2009

Os hífens da Reforma

Coluna publicada no jornal Folha de S. Paulo.

Pasquale Cipro Neto

Por falar em "mais-que-perfeito"...

Só nos cabe engolir que a regra é que não há regra clara; é preciso decorar as exceções e ter o "Volp" à mão

NA SEMANA PASSADA, analisei uma questão da última prova da Unifesp, que exigia do candidato o conhecimento do(s) valor(es) de alguns tempos verbais. O protagonista do teste era o pretérito mais-que-perfeito do indicativo.
Pois bem. Levados pela verdadeira salada "hifênica" que foi servida aos brasileiros pela reforma ortográfica (sim, reforma, e não acordo ortográfico, já que, por enquanto, isso tudo não passa mesmo de uma reforma ortográfica -exclusivamente brasileira, visto que os demais países lusófonos ainda não a adotaram), vários leitores escreveram para perguntar sobre os hifens (ou hífenes) de "mais-que-perfeito". "O hífen não caiu em locuções desse tipo?".
É melhor ir logo ao ponto, digo, ao texto oficial do acordo, digo, reforma, que, no sexto item de sua base XV ("Do hífen em compostos, locuções e encadeamentos vocabulares"), perpetra esta claríssima resolução: "Nas locuções de qualquer tipo, sejam elas substantivas, adjetivas, pronominais, adverbiais, prepositivas ou conjuncionais, não se emprega em geral o hífen, salvo (sic) algumas exceções já consagradas pelo uso (como é o caso de água-de-colônia, arco-da-velha, cor-de-rosa, mais-que-perfeito, pé-de-meia, ao deus-dará, à queima-roupa). Sirvam, pois, de exemplo de emprego sem hífen as seguintes locuções...".
Vou poupar o prezado leitor dos tais exemplos, quase todos mais do que inúteis, já que quase todas as expressões listadas jamais foram escritas com hífen. Está bem, vou dar umazinha só: "apesar de". Alguém já pensou em escrever isso com hífen? Então para que pôr isso no texto oficial? E qual foi o critério para estabelecer que "pé de moleque" (doce), "mula sem cabeça" (figura do folclore brasileiro), "água de coco" e "água de cheiro" (que se escreviam com hífen) não são casos "consagrados pelo uso"?
Outra falta de nexo no texto oficial se vê no primeiro item da mesma base XV. Nele se fala do hífen em palavras compostas. A coisa começa bem (mantém-se o hífen em compostos como "segunda-feira", "arco-íris", "decreto-lei", "luso-brasileiro", "guarda-chuva", "sul-africano", "mato-grossense" etc.), mas, quando se chega à observação que encerra esse item, encontra-se esta ressalva: "Certos compostos, em relação aos quais se perdeu, em certa medida, a noção de composição, grafam-se aglutinadamente: girassol, madressilva, mandachuva, pontapé, paraquedas, paraquedista etc.". O leitor leu bem as expressões "certos compostos" e "em certa medida"? E o mais do que abominável "etc."? Que significa isso?
Quando se lê essa ressalva (redigida com precisão inigualável), o mínimo que se pode fazer é usar o velho método da analogia: se ("em certa medida") se perdeu a noção de composição em "paraquedas" (que se escrevia "pára-quedas"), também se perdeu essa noção em...
Pode parar, caro leitor. Em "para-choque", "para-raios" e "para-brisa", mantém-se o hífen. Pode? Não pode, mas... Mas só nos cabe engolir que a regra é que não há regra clara, que é preciso decorar as exceções e, sobretudo, que é mais do que preciso ter à mão o recém-lançado "Vocabulário Ortográfico", para verificar que destino se deu a este ou àquele caso. É isso.

inculta@uol.com.br