terça-feira, 28 de outubro de 2008

Mesmo

"Mesmo" não exerce função de pronome pessoal

Thaís Nicoleti de Camargo

"Antes de entrar no elevador, verifique se o mesmo encontra-se parado neste andar." A frase é bem conhecida dos usuários de elevadores -pelo menos, daqueles que vivem na cidade de São Paulo, onde ela integra o texto da lei número 12.722, de 4 de setembro de 1998.
Muito bem. A frase, que freqüentemente tem sido lembrada como um mau exemplo do uso do pronome "mesmo", enseja uma revisão sobre o emprego desse demonstrativo, que, é bom que se diga, não deve ser usado no lugar dos pronomes pessoais.
É esse, aliás, o defeito principal dessa frase (que tem outros problemas que não cabe aqui comentar) e de uma quantidade de construções frasais típicas de boletins de ocorrência policial, nos quais esse uso parece ter-se tornado uma verdadeira "ferramenta de estilo". Quem não identifica logo a escrita dos relatórios policiais às construções do tipo "O acusado declarou não ter estado naquele local na hora do crime. "O mesmo" disse ainda que nunca estivera naquele local"?
Vamos entender o motivo de esse uso ser inadequado. O pronome "mesmo" tem origem em dois termos latinos, "ipse" e "idem", que orientam dois diferentes usos do pronome em português. Com o valor de "idem", que quer dizer "o mesmo", denota identidade e emprega-se ao lado de substantivos antepostos por artigos ou outros demonstrativos ("Fez as mesmas observações", "Dirigiu-se àquele mesmo rapaz"); com o valor de "ipse", que quer dizer "ele mesmo", emprega-se ao lado de substantivos ou de pronomes pessoais e significa "próprio", "em pessoa" ("Ele mesmo deu o recado").
Esses são os empregos tradicionais do pronome, que, entretanto, aparece em outras situações. Pode ser usado com valor de substantivo no sentido de "coisa semelhante" ("Na semana passada, choveu torrencialmente. Dizem que "o mesmo" ocorrerá nos próximos dias").
Note-se que "o mesmo" quer dizer "a mesma coisa", não "ele". Rigorosamente, portanto, ao dizermos "Verifique se o mesmo encontra-se..." (sic), estamos dizendo "Verifique se a mesma coisa se encontra...", o que não parece ser a idéia de quem formulou a frase.
Como advérbio, portanto como palavra invariável quanto ao gênero e ao número, é empregado para realçar verbos e advérbios, ao quais acrescenta um reforço semântico. Assim: "Ela escreveu mesmo ("de fato") aquilo?", "A reunião vai ser lá mesmo ("de fato")?". A essa idéia pode associar-se a de dúvida. Numa construção como "Ganhou na loteria? Mesmo?", a interrogativa "Mesmo?" sugere descrença e surpresa.
Na condição de palavra denotadora de limite, "mesmo" tem o valor aproximado de "até". Numa construção como "Mesmo as pessoas amigas duvidaram dele", provavelmente derivada de "Até mesmo as pessoas amigas duvidaram dele", o pronome que atuava como realce da preposição "até" passou a substituí-la, assumindo o seu valor semântico.
Na locução conjuntiva "mesmo que", exprime a idéia de concessão, ou seja, de aceitação de uma situação oposta. Assim: "Mesmo que você não me queira ouvir, vou dizer o que acho".
Palavra de uso constante na língua, "mesmo" admite o superlativo ("mesmíssimo") e deu origem ao substantivo "mesmice", um sinônimo um tanto pejorativo de "marasmo" ou "ausência de mudança".


THAÍS NICOLETI DE CAMARGO, consultora de língua portuguesa do Grupo Folha-UOL, é autora dos volumes "Redação Linha a Linha" (Publifolha), "Uso da Vírgula" (Manole) e "Manual Graciliano Ramos de Uso do Português" (Secom-AL).

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Artigo publicado no jornal Folha de S. Paulo em 28 de outubro de 2008.

A ordem dos fatores

"Manifesto contra a nudez de Pedro Cardoso"

Pela enésima vez, caro leitor, lembro que as palavras devem ser dispostas nas frases com critério, com nexo.

Pasquale Cipro Neto

O GRANDE AUGUSTO DE CAMPOS dedica seu belíssimo livro "Balanço da Bossa e Outras Bossas" (de 1974) ao avô, Américo de Campos, "que me ensinou a gostar de poesia e a passar a vida inteira lutando por causa perdida".
Muitas vezes, sinto-me exatamente como Augusto. Quando vejo, por exemplo, certos títulos jornalísticos, acho que perco o meu latim (é bom saber que a expressão "gastar/ perder o seu latim" significa "trabalhar ou esforçar-se inutilmente").
Veja este título, posto na primeira página de um site, na semana passada: "Selton Mello responde ao manifesto contra a nudez de Pedro Cardoso". Eu estava fora da pátria amada, acompanhando a distância o que se sucedia por aqui. Não sabia que Cardoso se manifestara contra a nudez gratuita no cinema e no teatro.
Minha primeira reação foi supor que Cardoso ficara nu e que isso causara escândalos, revoltas, manifestos etc., e que, solidário, Selton Mello saíra em defesa de Cardoso.
Resolvi deixar o título de lado e ler a notícia toda. Nada de Cardoso nu, nada de manifesto contra a nudez dele, nada de apoio de Selton a Cardoso. O problema estava no (horroroso) título que eu lera, cujas peças estavam fora de lugar. O que se queria informar exigia que as palavras fossem dispostas nesta ordem: "Selton Mello responde ao manifesto de Pedro Cardoso contra a nudez".
Pela enésima vez, caro leitor, lembro que as palavras devem ser dispostas nas frases com critério, com nexo. Muitas vezes, a ordem dos fatores altera -e muito!- o produto. A parte dos estudos lingüísticos que se ocupa das relações entre as palavras e as orações é a regência.
Basta que duas palavras se relacionem para que se estabeleça um mecanismo de regência. Em "mulher bonita", por exemplo, o termo regente é "mulher"; o regido é "bonita". E por quê? Porque nesse par o substantivo (que não por acaso se chama substantivo -é a substância) é feminino, o que exige que o adjetivo ("bonita") assuma a forma feminina, em sintonia com "mulher".
Pois no título relativo à nudez de Cardoso, digo, ao manifesto de Cardoso contra a nudez gratuita no teatro e no cinema, a expressão "de Pedro Cardoso" é regida pelo substantivo "manifesto" e não pelo também substantivo "nudez". O nome "manifesto" rege ainda a expressão "contra a nudez". É fundamental que a ordem dos termos seja tal que impeça interpretação diferente da que se pretende, diferente daquela que espelha com veracidade os fatos.
Mas a coisa não parou no embate entre Mello e Cardoso. Veja esta outra pérola, perpetrada por um jornal (em letras graúdas): "Mãe de Eloá diz que perdoa Lindemberg durante velório". O perdão se encerra quando acaba o velório? E depois? Ou será que a mãe daria o perdão durante o velório? Mas Lindemberg estava preso, isto é, não poderia ir ao velório.
Há um mês, a pérola da vez foi esta: "Democratas e republicanos atribuem impasse em plano de socorro a McCain". Que significa isso? Que há um impasse num plano que visa a socorrer o pobre McCain? É o que parece. A expressão "a McCain" não é regida pelo substantivo "socorro", mas pela forma verbal "atribuem". A ordem que melhor traduziria o sentido pretendido é esta: "Democratas e republicanos atribuem a McCain impasse em plano de socorro".
Mais uma vez, pergunto: é difícil? Não creio. Basta ler, reler, ler -e com muita atenção. Do contrário... É isso.

inculta@uol.com.br

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Artigo publicado no jornal Folha de S. Paulo, em 23 de outubro de 2008.