sexta-feira, 23 de abril de 2010

Silepse

PASQUALE CIPRO NETO

"Vossa Excelência parece contrariado/a"


Em "Vossa Excelência parece contrariado", o adjetivo "contrariado" concorda com o sexo do ser representado
NA SEMANA passada, tratei de uma questão do último vestibular da PUC de São Paulo, em que se abordava o emprego da expressão "a gente" na letra de uma canção popular. No fim do texto, citei estes versos de Drummond: "Eu não devia te dizer / mas essa lua / mas esse conhaque / botam a gente comovido como o diabo".
Vimos que em "botam a gente comovido" ocorre uma concordância diferente da que pregam as regras gramaticais. O adjetivo "comovido", masculino, não concorda com o substantivo "gente", feminino, mas com o seu significado ou valor. Esse "a gente" está aí por "eu". Em casos como esse, a expressão "a gente" é definida como "a(s) pessoa(s) que fala(m)"; "eu", "nós" ("Aulete", versão eletrônica) ou como "a pessoa que fala em nome de si própria e de outro(s)"; "nós" ("Houaiss"). É bom lembrar que o nome desse fenômeno linguístico é "silepse" (concordância com a ideia, com o sentido mais próximo, e não com a forma).
Notou o que fez o "Houaiss" na definição de "a gente"? Vamos lá: que dizer da sequência "pessoa", "própria" e "outro(s)"? A forma "outros" não carece de explicação, já que pode muito bem ter o sentido de "as outras pessoas", mas e a forma "outro" ("a pessoa que fala em nome de si própria e de outro")? Não seria "outra"? Ou será esse outro caso de silepse? E, se for, a que termo se referirá a palavra masculina "outro"?
Que tal vermos os tipos de silepse? Como as concordâncias (verbal/nominal) podem envolver o gênero (masculino/feminino), o número (singular/plural) e a pessoa (primeira/segunda/terceira), são essas as classificações dos diversos tipos de silepse. Quando se diz, por exemplo, que "São Paulo é insuportavelmente suja e esburacada", com quem concordam os adjetivos "suja" e "esburacada", femininos? Com "São Paulo", que, ao pé da letra, é expressão masculina?
Certamente não. Esses adjetivos concordam com o sentido de "São Paulo" (a cidade de São Paulo).
O caso que acabamos de ver é de silepse de gênero, já que o que se trocou foi justamente o gênero (em vez do masculino, da expressão "São Paulo", empregou-se o feminino, em acordo com o sentido).
É nesse caso que se enquadra o título desta coluna. Em "Vossa Excelência parece contrariado", o adjetivo masculino "contrariado" não concorda com a forma feminina da expressão de tratamento "Vossa Excelência", mas com o sexo do ser representado (um deputado, senador, prefeito, governador, presidente etc.). Se a frase fosse dirigida a uma mulher, seria empregada a forma feminina ("contrariada").
Vejamos outro caso: "Os professores temos plena consciência de que...". Essa frase só pode ser dita por um... Por um professor, é claro.
Quando atuam como sujeito, formas como "os professores" costumam levar o verbo para a terceira pessoa do plural ("Os professores têm plena consciência de que...").
No exemplo visto, quebrou-se a "normalidade" com o emprego de "temos", da primeira do plural, que não concorda com "os professores", mas com "nós", forma presente no pensamento de quem emitiu a frase (obrigatoriamente um professor). A silepse agora é de pessoa, já que se trocou a terceira do plural ("eles") pela primeira ("nós").
Por fim, veja este exemplo: "Pediu à turma que não fizessem barulho". A quem se refere a forma verbal "fizessem"? Ao substantivo coletivo "turma", cuja forma é do singular? Não. A forma "fizessem" concorda com o significado da palavra "turma". O que há aí, portanto, é um caso de silepse de número, já que se trocou o singular (de "turma") pelo plural (de "alunos", "colegas", "companheiros"). É isso.

inculta@uol.com.br

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Publicado no jornal Folha de S. Paulo em 22 de abril de 2010.

terça-feira, 20 de abril de 2010

Língua - Revista Veja

Idioma

A multiplicação das palavras

Os vocábulos estrangeiros se incorporam ao português numa velocidade assombrosa, enriquecem a língua e levantam a discussão sobre adaptar ou não sua grafia

Nataly Costa

Thiago Prado Neri/Tv Globo
Letra por letra
Daniel (primeiro à esq. no trio ao centro da foto), no Caldeirão do Huck: traído pela palavra kirsch, recente no português


No sábado 10, o programa de TV Caldeirão do Huck exibiu a etapa final de um de seus quadros fixos, o Soletrando. Nele, estudantes de 5ª a 8ª série devem provar seus conhecimentos da língua portuguesa ao soletrar palavras sorteadas. O vencedor leva 100 000 reais. O estudante mineiro Daniel Coutinho, de 13 anos, perdeu o prêmio por pouco. Atrapalhou-se ao soletrar a palavra kirsch, nome de um tipo de aguardente à base de frutas. O termo é alemão, mas, por encontrar-se difundido entre os apreciadores de bebidas no Brasil, figura como verbete no Aurélio, dicionário da língua portuguesa que serve de base para a competição. O episódio ilustra uma mudança profunda ocorrida nos últimos tempos na forma de incorporação de palavras estrangeiras ao português falado no Brasil. Antes, os vocábulos estrangeiros só eram dicionarizados depois de ter seu uso consagrado entre os brasileiros por pelo menos uma década. Hoje, a população adota uma quantidade crescente de palavras estrangeiras – e os dicionários correm para transformá-las em verbetes, sob o risco de se tornarem obsoletos. Diz Valéria Zelik, editora do Aurélio: "O idioma já teve mais tempo para adquirir novas lexias. Atualmente, a velocidade das informações vindas de diversas áreas do conhecimento é algo impressionante, e elas trazem novos vocábulos".

Para se ter uma ideia da agilidade desse processo de transformação da língua, os editores dos dicionários Aurélio, Houaiss e Larousse usam um programa de computador desenvolvido para pesquisar continuamente palavras estrangeiras que aparecem nos jornais, revistas e sites brasileiros. Quando o uso de uma palavra se torna frequente, é sinal de que pode ser a hora de dicionarizá-la. A ideia de que é preciso aportuguesar os vocábulos estrangeiros, segundo os especialistas, está ultrapassada. O que determina o aportuguesamento ou não de palavras estrangeiras é a forma como a população se familiariza com elas. De acordo com a lexicógrafa Thereza Pozzoli, da equipe do dicionário Larousse, alguns vocábulos, graças à semelhança com a morfologia e a fonética brasileiras, são adaptados para o idioma com naturalidade. É o caso de blecaute, ateliê, quiosque e surfe. Outros termos mantêm a forma do idioma original, como marketing, design e réveillon. Há palavras aportuguesadas que figuram no dicionário, mas não vingam no dia a dia, como esqueite (skate) e leiaute (layout). "Nem sempre optamos pelo aportuguesamento, pois o uso do vocábulo em sua língua original se mostra preponderante", explica Renata Menezes, da equipe do Aurélio.

A multiplicação das palavras estrangeiras no português pode apavorar os puristas do idioma, como o deputado Aldo Rebelo, cuja luta para proibir os estrangeirismos no país já se tornou folclórica. Para estes, o exemplo a ser seguido é o de Portugal, que tenta traduzir tudo para a língua nativa – o mouse do computador, por exemplo, é chamado de rato. Os grandes linguistas brasileiros, contudo, concordam que os termos estrangeiros servem para enriquecer o idioma, não para prejudicá-lo. "Se o estrangeirismo fosse nocivo, a própria língua trataria de expulsá-lo", pondera o gramático Evanildo Bechara, da Academia Brasileira de Letras.

A história mostra que é da natureza dos idiomas incorporar vocábulos estrangeiros e que, nesse processo, eles evoluem. Na Idade Média, a língua portuguesa contava com apenas 15 000 palavras. Hoje, são mais de 400 000, muitas delas importadas, através dos séculos, do árabe, do italiano, do francês e do inglês. O linguista americano Noah Webster (1758-1843), considerado "o pai da educação" em seu país, costumava lembrar que o idioma vive e pulsa no dia a dia da população, e não nos gabinetes dos intelectuais. Dizia ele: "A língua não é uma construção abstrata dos sábios, ou dos dicionaristas. Ela nasce do trabalho, das necessidades, das relações humanas, das alegrias, afeições e experiências de muitas gerações". O termo alemão kirsch, que derrubou o estudante Daniel Coutinho na TV, poderá um dia soar natural para seus filhos.


Língua viva e veloz

No passado, os dicionaristas esperavam dez anos para verificar se uma palavra estrangeira fora adotada plenamente no país. Hoje, com a rapidez com que os estrangeirismos são incorporados ao português, esse prazo é de um ou dois anos. A seguir, vocábulos que serão incluídos na próxima edição do Dicionário Aurélio*


Tecnologia
Smartphone – Celular com alguns recursos de computador
Pop-up – Janela que se abre em página da internet para propaganda
MP3 – Forma de compactação de arquivos de áudio
Antispam – Programa que previne publicidade eletrônica não solicitada
Bluetooth – Tecnologia para conectar dispositivos sem o uso de cabo


Gastronomia
Blanquette– Guisado de carne branca
Chutney – Tipo de geleia de origem indiana
Muffin – Pão fofo doce assado em pequenas fôrmas
Sashimi – Prato da culinária japonesa que consiste em fatias de peixe cru
Bock – Tipo de cerveja adocicada e de teor alcoólico forte
Pierogi – Prato da culinária polonesa que consiste em pastéis cozidos
com diversos tipos de recheio


Comportamento/Esportes
Bullying – Violência psicológica ou física praticada repetidamente
Antidoping – Tipo de exame que busca identificar substâncias de uso proibido no sangue dos atletas
Barwoman – Mulher que prepara drinques profissionalmente
Off-road – Diz-se de veículo próprio para trafegar em terrenos acidentados
Brake-light – Luz de freio dos veículos


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Publicado na Revista Veja de 21 de abril de 2010, edição 2161

quarta-feira, 14 de abril de 2010

Twitter chama a atenção de empresas

NEGÓCIOS >> Presença no microblog pode dobrar a quantidade de mensagens postadas sobre a marca no serviço, diz pesquisa

Reprodução

Tela de votação para escolher o sabor da nova pizza da Pizza Hut de Porto Alegre; as sugestões foram feitas por seguidores da marca no Twitter

DA REPORTAGEM LOCAL

A presença de uma empresa no Twitter é capaz de dobrar a quantidade de mensagens postadas sobre a marca no serviço de microblog. A conclusão é de uma pesquisa do iDigo (Núcleo de Inteligência Digital).
O estudo analisou 91.145 mensagens trocadas no microblog sobre 50 marcas de relevância nacional, de oito setores econômicos, durante o período de 20 de setembro a 24 de outubro de 2009.
Cláudio Torres, consultor em marketing digital que participou da pesquisa, diz que o aumento expressivo no número de internautas brasileiros contribui para que as empresas deem mais atenção às mídias sociais. "Eram cerca de 28, 29 milhões de internautas em 2007. Hoje em dia os últimos números já falam em mais de 67 milhões", diz.
Das 50 empresas pesquisadas, 42% têm perfil no Twitter e postam, em média, cinco mensagens por dia.
Embora as empresas que não têm Twitter também sejam citadas, o grupo que atua no microblog concentra 74% do volume total de mensagens trocadas sobre marcas no período.
Outros 11,2% das mensagens postadas que citam as empresas são retransmitidas a outros usuários. No setor de cosméticos, essa taxa chega a dobrar.

Sucesso
Algumas empresas entenderam o funcionamento das mídias sociais e fazem mais do que promoções ou divulgação de produtos e serviços.
No perfil da Sacks Perfumaria (@sacksperfumaria), cada seguidor representa uma doação de R$ 0,25 feita pela empresa para o Instituto Criar, dedicado à inserção de jovens de baixa renda no mercado de trabalho.
Outro exemplo é o perfil da Livraria Saraiva (@saraivaonline), que mantém um relacionamento bem pessoal no tom das respostas aos usuários, além de realizar concursos exclusivos para os usuários do microblog.
Em Porto Alegre, a rede Pizza Hut (@pizzahutpoa) abriu o perfil para sugestões de sabores de pizza enviados pelos seguidores.
"Recebemos 80 sugestões, numero que consideramos muito bom" diz a gerente de comunicação da empresa, Dana Chmelnitsky. "As cinco melhores foram escolhidas e colocadas em votação em nosso site". O prêmio para o ganhador será um jantar com 8 acompanhantes. (ALEXANDRE ORRICO)

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Publicado no jornal Folha de S. Paulo em 14 de abril de 2010.

Twitter

Negócios em 140 toques

Empresas usam Twitter e outras redes sociais para vender, comprar, divulgar produtos e falar com seus clientes

ALEXANDRE ORRICO


Um ano se passou desde quando a padaria britânica AlbionCafe (twitter.com/AlbionsOven) começou a usar o Twitter para avisar seus seguidores quando uma nova fornada de pães quentinhos ficava pronta. De lá para cá, cada vez mais marcas ingressam no Twitter, em busca de uma fatia maior do mercado e aumento dos lucros.
As grandes empresas americanas parecem ter abraçado de vez as mídias sociais. Estudo realizado em fevereiro pela Society for New Communications Research mostrou que mais de um terço das 500 maiores companhias americanas listadas pela "Fortune" usam o Twitter de forma recorrente. Entre as cem primeiras do ranking, o índice chega a 50%.
No Brasil, a presença de uma empresa no Twitter pode dobrar a quantidade de mensagens geradas sobre a marca no microblog, segundo pesquisa realizada pelo iDigo (Núcleo de Inteligência Digital). Das 50 empresas pesquisadas, 42% têm perfil no Twitter e postam, em média, cinco mensagens por dia.
Publicitários entrevistados pela Folha são unânimes: o Twitter é uma ferramenta poderosa e fundamental para a marca de quem anuncia. O alto poder de propagação e o tamanho de sua audiência no Brasil -o Twitter é a segunda maior rede social do país, com 8,8 milhões de usuários- são alguns dos fatores citados.
Algumas empresas entenderam o funcionamento das mídias sociais e, apesar de grande parte dos perfis corporativos usar o microblog para promoções ou divulgação de produtos e serviços, já há perfis empresariais criativos.
Embora o Twitter seja o nome do momento, as empresas têm outras opções para se fazer presentes no mundo virtual. O Orkut, maior rede social do país, concentra um grande número de perfis empresariais -apesar de não chamarem tanto a atenção quanto no Twitter.

Gurus
Com a popularização do uso da ferramenta por empresas, nasceu uma indústria própria de gurus digitais, que escrevem livros e sites com dicas e prometem apontar caminhos para quem quer ter sucesso nos negócios usando o Twitter.
Confira, nesta edição, uma entrevista com Sarah Milstein, coautora do livro "Desvendando o Twitter", um dos primeiros livros sobre o serviço de microblog.
No Brasil, instituições conhecidas do país que focam no mundo dos negócios já têm cursos de mídias sociais nos quais o Twitter é destacado.

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Publicado no jornal Folha de S. Paulo em 14 de abril de 2010.

segunda-feira, 12 de abril de 2010

Língua portuguesa

Encontro reúne intelectuais para discutir valorização da língua portuguesa

Izabel Toscano

Publicação: 30/03/2010 09:16 Atualização: 30/03/2010 09:30

Que Brasil, Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, Portugal, São Tomé e Príncipe e Timor-Leste são países unificados pela cultura e pela língua portuguesa — apesar da diferença geográfica e de sotaque — já é sabido. Mas que o português gera tanta curiosidade fora das fronteiras desses países pode parecer uma surpresa.

Pois, no último fim de semana, alemães, franceses, americanos, africanos e latino-americanos passaram duas tardes falando e pensando a língua portuguesa. Com deslizes e gafes previsíveis — e que muitas vezes geraram cenas engraçadas — gente dos quatro cantos do mundo impressionou os brasilienses com uma pronúncia dedicada e, em muitos casos, perfeita. Tanto que foi desnecessária a tradução simultânea, comum em eventos deste porte.

Na plateia, estudiosos, professores, alunos e gente curiosa. Nas mesas de discussão, escritores, críticos e acadêmicos daqui e do mundo. Todos reunidos — no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB) — durante o Encontro Literário da I Conferência Internacional sobre o Futuro da Língua Portuguesa no Sistema Mundial. O objetivo: refletir sobre os desafios e os avanços da língua num contexto cultural já que, hoje, cerca de 230 milhões de pessoas falam português no mundo.

“O engraçado é que a pronúncia às vezes nos faz entender algo diferente. “Fascínio” vira “faxina”, na fala dos portugueses, brincou a professora Alessandra Morais, 35 anos. “É interessante vir a um encontro assim justamente para a gente ver as diferentes nuances da língua”, avaliou o servidor público João Junqueira da Silva, 28 anos.

Pois, se há fronteira entre os países e a própria língua, muitos concordam que ela está mais fluida. “Em Londres, o português é uma das línguas mais ouvidas no dia a dia”, afirmou o tradutor inglês David Treece.



Para a maioria dos especialistas, uma das formas desse intercâmbio entre o português e outros países é a música. “Há pessoas que se interessam pelo português por causa da música brasileira, assim como os jovens se interessam pelo inglês por causa do rock”, avaliou o poeta Antonio Cícero. “Caetano Veloso e Gilberto Gil, por exemplo, foram importantes na educação sentimental dos argentinos. A música continua sendo o maior difusor da língua brasileira”, acrescentou a tradutora argentina Florência Garramuño.

Demanda
E foi a tradução literária outro ponto de destaque no encontro. Para a tradutora Patrícia Vieira, é a relação afetiva entre a pessoa e o país que gera uma maior demanda por conhecê-la. “Para quem já teve algum contato com a língua, a tradução abre novas portas”, acredita.

O alemão Berthold Zilly impressionou com uma pronúncia beirando a perfeição. Tradutor de livros clássicos da literatura brasileira, ele lembrou que, lá fora, o Brasil está em evidência: “Graciliano Ramos e Machado de Assis, por exemplo, estão esgotados na Alemanha. E já existe uma negociação para que, em 2013, o Brasil seja o tema central da Feira do Livro em Frankfurt.”

A tradução, o mercado, a convivência com outras línguas, a inserção na internet e a música foram temas debatidos em seis mesas durante os dois dias — e despertaram para a valorização da língua. “Deveria ser um evento mais frequente. Mas o Brasil não se preocupava muito com esse assunto. Hoje tem dado mais importância à língua. A reunião de países que falam o mesmo idioma num único lugar é importante”, comentou o poeta Antonio Cícero.

Para o poeta Régis Bonvicino, a dificuldade em tornar encontros como esse mais habituais ainda reside no distanciamento histórico entre os países. “E também o provincianismo e o autoisolamento brasileiro que é grande. Temos uma abertura para a indústria cultural, mas somos fechados para a cultura erudita”, disse.

“Portugal é parecido com o Brasil. Lá ainda resiste um deslumbramento com relação ao estrangeiro, um sentimento de que o português é de Portugal. Acho que, por isso, esse encontro se torna algo tão extraordinário”, acrescentou o português e professor da Universidade Nova de Lisboa, Abel Barros Baptista.


OUTRAS LÍNGUAS
A convivência entre a língua portuguesa e as nativas foi tão polêmica que ultrapassou o tempo estabelecido. Mas todos concordaram que, apesar de ter sido imposta, a língua portuguesa acabou se incorporando positivamente aos países. Por duas horas, a poetisa guineense Odete Semedo intermediou a conversa entre o escritor Luis Cardoso de Noronha (Timor-Leste), a professora Carmen Tindó, o jovem escritor Ondjaki (Angola) e o professor Waldemar Ferreira Netto. “O português entrou na maioria dos países africanos pela colonização. Mas, após décadas, a língua se reinventou e tornou-se deles e nossa por direito. Os escritores fizeram uma revolução dentro da própria língua do colonizador, africanizando-a por dentro”, resumiu Carmen Tindó. Para Ondjaki (maior expressão da nova geração de escritores de Angola), o grande desafio é preservar as línguas pátrias. “O português é mais falado nas cidades. As línguas africanas ficaram no interior. Aprendemos o inglês desde crianças, mas deveríamos ter a possibilidade de aprender nossas línguas nacionais. É certo que existe uma evolução da língua; dizem que uma prevalece e as outras acabam desaparecendo. Mas não tem que ser assim”, disse ele.

A tradução abrindo caminhos

A primeira mesa de debates reuniu tradutores de peso. Bryan McCan, dos Estados Unidos, mediou a conversa entre Berthold Zilly (Alemanha), Florencia Garramuño (Argentina), Patrícia Vieira (Portugal) e Patrick Quillier (França). A reedição de livros já traduzidos e esgotados nos países, a tradução de textos teóricos e a maior circulação de produções brasileiras nos mercados estrangeiros permearam as reflexões durante 1h30.

A maioria dos tradutores reconheceu que a demanda é maior em relação a clássicos brasileiros como os de Machado de Assis e Guimarães Rosa. E reforçam que a tradução é fundamental como instrumento de ensino. “Ela ajuda os estudantes porque transmite a eles a riqueza da língua. Por isso é preciso a tradução de mais ensaios teóricos, já que há uma ideia de que o português é um língua apenas de escritores e não de pensadores da literatura”, pontuou Patrícia Vieira. “Temos que defender o que ainda não é canônico e que vem também da periferia”, completou Berthold Zilly.



A última mesa de debates — a mais concorrida pelo público — girou em torno de literatura e música. O português Abel Barros Baptista coordenou a conversa entre o poeta e compositor Antonio Cícero, o professor e tradutor David Treece (Reino Unido), a produtora e diretora de cinema Helena Solberg e o músico e escritor Hortencio Langa (Moçambique).

“O forte no Brasil é a cultura oral e não a letrada. E a música permitiu uma solução, com músicos que escrevem belas letras”, iniciou Helena Solberg. Para David Treece, fora do Brasil se conhece a música não pela qualidade de seus compositores, o que é uma falha. “Mas é a canção que nos dá a possibilidade de habitar e vivenciar outra cultura. O primeiro passo para esse diálogo linguístico ocorre por meio da música”, acredita.

O debate também gerou discussão entre o que é ou não poesia dentro da música brasileira. O que levou a um embate entre o poeta Régis Bonvicino, que estava na plateia, e Antonio Cícero. Este último resumiu: “Não se pode determinar isso. Uma boa letra de música é possivelmente (e não necessariamente) um bom poema. Exemplo do trabalho de Caetano Veloso, que tem letras que podem ser lidas como poema.” Bonvicino foi contra, iniciando uma discussão sobre a qualidade poética de Caetano. Com a polêmica, a mesa de debates, que já ultrapassava 1h30, foi encerrada. “Vamos promover as olimpíadas de letrismo contra os poetas”, ironizou Abel Baptista.

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Publicado no jornal Correio Braziliense em 30 de março de 2010.

quinta-feira, 8 de abril de 2010

De novo ele! Genial como sempre.

sPASQUALE CIPRO NETO

"É consensual que (as) poucas leis brasileiras..."


Tenho a impressão de que muita gente teve dificuldade para perceber que as duas afirmações são equivalentes

NA COLUNA DA SEMANA passada, ao analisar a(s) bendita(s) frase(s) que encerra(m) as peças publicitárias de medicamentos ("A/Ao/Se persistirem os sintomas, o médico..."), afirmei, em tom meio jocoso, que "não entendo bem por que "o médico" e não "um médico", mas isso é outra história".
Na segunda-feira, a professora Priscila Figueiredo, que trabalha comigo na TV Cultura, disse-me que lera a coluna e, também em tom meio jocoso, afirmou que o uso do artigo "o" em "o médico deverá ser consultado" lhe dá a impressão de volta aos velhos tempos, como se o médico fosse uma espécie de pajé, o único da tribo. Eu complementei o que ela disse com a informação de que em muitos países existe a figura do médico (do serviço público) de família, o que torna razoável o uso do artigo definido. Por aqui, parece melhor optar mesmo pelo indefinido ("um médico deverá ser...").
Pois bem. Revirando a memória, lembrei-me de uma questão do último vestibular do Ibmec-SP, que, de forma muito interessante, aborda a questão do emprego do artigo definido. O enunciado da questão era este: "Compare estes períodos: I - É consensual que as poucas leis brasileiras sobre crimes ambientais não funcionam. II - É consensual que poucas leis brasileiras sobre crimes ambientais não funcionam".
Vou poupar o leitor do desfile das cinco opções (tratava-se de um teste de múltipla escolha). Vou direto ao ponto: o prezado leitor já sabe que diferença existe entre as frases? Já sabe onde está o xis do problema?
Vamos lá. Na primeira frase (em que há o artigo definido "as" antes de "poucas leis brasileiras"), afirma-se que no Brasil há poucas leis sobre crimes ambientais e que nenhuma funciona. Na segunda, afirma-se mais ou menos o contrário, ou seja, que, no geral, as leis brasileiras sobre crimes ambientais funcionam -só algumas (poucas) não funcionam.
No teste do Ibmec, a resposta correta era esta: "A presença do artigo definido, na frase I, permite inferir que a afirmação contém uma crítica à eficiência das leis ambientais".
Tenho a impressão de que muita gente teve dificuldade para perceber que as duas afirmações são equivalentes, ou seja, que o texto da resposta é uma "tradução" da frase I. Um dos empecilhos pode ser o vocabulário (o verbo "inferir", por exemplo, que significa "deduzir", "concluir").
Outro empecilho pode estar na própria capacidade do candidato de entender que, se na frase I se diz que "as poucas leis sobre crimes ambientais não funcionam", diz-se que as leis são poucas e não funcionam. Mutatis mutandis, os casos vistos hoje lembram outro, clássico, já abordado aqui algumas vezes -o das orações introduzidas pelo pronome relativo "que". Para refrescar a memória, leia estas duas frases: "A partir da semana que vem, os brasileiros que gostam de literatura poderão frequentar a mais nova sala de leitura do país, localizada..."; "A partir da semana que vem, os brasileiros, que gostam de literatura, poderão frequentar a...".
Pois bem. Qual é mesmo a diferença entre as duas construções? Se o caro leitor leu com atenção, percebeu que, na segunda construção, a oração "que gostam de literatura" vem entre vírgulas, certo?
Como o espaço está no fim, vou direto ao ponto: as vírgulas são usadas quando se quer generalizar a afirmação. Na segunda, portanto, afirma-se que, em geral, os brasileiros gostam de literatura.
Na primeira construção, sem as vírgulas, restringe-se o universo dos seres mencionados (os brasileiros, no caso). Moral da história: sem as vírgulas, afirma-se que essa parcela dos brasileiros (a parcela que gosta de literatura) poderá frequentar a mais nova sala... É isso.

inculta@uol.com.br

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Publicado no jornal Folha de S. Paulo em 08 de abril de 2010.

quinta-feira, 1 de abril de 2010

PASQUALE CIPRO NETO

"Se persistirem os sintomas..."


No fim do "reclame" (que saudade dos tempos dos "reclames"!), aparece, em letras bem grandinhas...

UFA! FINALMENTE alguém do meio publicitário ou do farmacêutico percebeu a pouca funcionalidade do uso das expressões "A persistirem os sintomas..."/ "Ao persistirem os sintomas...", ainda presentes em quase todas as peças publicitárias de medicamentos.
Como o caro leitor deve saber, essas peças (por lei?) terminam com as conhecidas e já citadas advertências, completadas com estes dizeres: "...o médico deverá ser consultado". Confesso que não entendo bem por que "o médico" e não "um médico", mas isso é outra história. Fiquemos com a bendita questão da opção entre "A persistirem" e "Ao persistirem", que, por sinal, já comentei neste espaço, há muito tempo.
O fato é que o tempo passa, e as mensagens dos leitores sobre essa questão não terminam. "Qual é a forma correta?", perguntam, como se só uma das duas fosse correta. Vamos lá: as duas são possíveis, corretas etc., o que não significa que são equivalentes. Não são. Em "A persistirem os sintomas...", temos a preposição "a" introduzindo uma oração que expressa ideia de condição, ou seja, uma oração condicional, equivalente a "Se persistirem os sintomas", "Caso persistam os sintomas".
Esse emprego da preposição "a" (introduzindo ideia de condição) é comum nos textos clássicos, jurídicos, filosóficos e mesmo em construções comuns no dia a dia, como esta: "A julgar pelo que vi ontem, não há boas perspectivas de solução do problema" ("A julgar pelo que vi ontem" equivale a algo como "Se julgar/caso julgue pelo que vi...").
Em dicionários brasileiros e portugueses, encontram-se exemplos como estes: "A ser essa a única solução, é melhor desistir" ("A ser essa a única solução" = "Se for/Caso seja essa a única solução"); "A caminharmos neste ritmo, não chegaremos a tempo" ("A caminharmos neste ritmo" = "Se caminharmos/Caso caminhemos neste ritmo"). Deve-se notar a alteração na flexão do verbo quando se troca "se" por caso".
E a forma "Ao persistirem os sintomas"? A coisa muda. O infinitivo introduzido por "ao" constitui oração de valor essencialmente temporal ("Ao persistirem os sintomas" = "Quando persistirem os sintomas").
Esse uso de "ao" com infinitivo é mais do que comum, como se vê em "Ao sair, apague a luz" ("Ao sair" = "Quando sair") ou em "Ao beijá-la, sinto os pés saírem do chão" ("Ao beijá-la" = "Quando a beijo").
No caso da publicidade dos medicamentos, faz muito mais sentido pensar em "A persistirem os sintomas", ou seja, na indicação da ideia de condição ("Se persistirem/Caso persistam os sintomas"). Mas, cá entre nós, melhor mesmo é fazer o que (ufa!) fez uma agência de propaganda (que, infelizmente, não posso nomear -só vi a peça publicitária uma vez, ou melhor, menos de meia vez).
No fim do "reclame" (que saudade dos tempos dos "reclames"!), aparece na tela, em letras bem grandinhas, a frase "Se persistirem os sintomas...", confirmada pelo locutor.
Convém aproveitar a ocasião para lembrar que, quando se usa a preposição "a", emprega-se o verbo no infinitivo, o que explica a obrigatoriedade da opção por "ser" em "A ser essa a única solução, é melhor desistir". A troca da preposição "a" pela conjunção "se" implica o uso de uma forma verbal finita -do indicativo ou do subjuntivo, portanto ("Se for essa a única solução/Se é essa a única solução, é melhor..."). É isso.

inculta@uol.com.br

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Publicado no jornal Folha de S. Paulo em 01 de abril de 2010.