quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Verbos: particípio

PASQUALE CIPRO NETO

Por falar em particípio...


Algumas gramáticas apresentam orientação diferente da clássica quando elencam os duplos particípios


NA SEMANA PASSADA, para explicar a questão do uso das formas "presidente" e "presidenta", citei a expressão "particípio presente". Afirmei que palavras terminadas em "-nte", como "presidente", "agente", "pedinte" etc., vêm do particípio presente de verbos latinos e traduzem a noção de agente de determinado processo. O presidente, por exemplo, é quem preside, o pedinte é quem pede, o viajante é quem viaja e assim por diante.
Pois a expressão "particípio presente" fez muita gente lembrar-se de outra expressão, o "particípio passado". Um leitor disse o seguinte: "Era por isso que nos diziam que "beijado" é o "particípio passado" de "beijar'? E por que não nos ensinavam o que é o particípio presente?".
Pois é. O particípio passado, hoje chamado simplesmente de particípio, é uma das formas nominais do verbo (gerúndio, infinitivo e particípio). Sabemos que a forma regular do particípio dos verbos terminados em "ar" termina em "ado" (beijado, estudado, transportado etc.) e a dos verbos terminados em "er" ou "ir" termina em "ido" (bebido, esquecido, permitido, dividido, iludido).
Sabemos também que a maior parte dos verbos apresenta apenas o particípio regular (beijado, permitido) e que alguns verbos apresentam apenas o particípio irregular (feito, escrito, aberto). Por fim, sabemos que há verbos que apresentam duplo particípio (salvado/salvo, prendido/preso, extinguido/extinto). E é aí que a roda começa a pegar. Quando usar este ou aquele?
As gramáticas e os dicionários costumam simplificar a questão ao afirmar que, quando o auxiliar é "ter" ou "haver", emprega-se a forma regular do particípio (tinha/havia salvado, tinha/havia extinguido) e que, quando o auxiliar é "ser" ou "estar", emprega-se o particípio irregular (foi/está salvo, foi/está preso, foi/ está extinto).
Até aí, tudo bem. Na verdade, tudo mais ou menos bem. Ninguém será perturbado se seguir essa "regra", mas não se pode negar que o uso já consagrou o emprego de formas irregulares do particípio, como "aceito" e "entregue", com os auxiliares "ter" e "haver" (tinha/havia aceito/entregue). A seguir ao pé da letra a "regra" clássica, obter-se-iam as formas tinha/havia aceitado e tinha/havia entregado.
Algumas gramáticas tentam apresentar orientação diferente da clássica ao elencar os duplos particípios e seus usos. Uma delas é a de Evanildo Bechara. A tarefa é delicada, mas tem o mérito de fugir da obviedade e levar em conta o que efetivamente se usa no idioma.
Uma coisa é clara, porém: partir da ideia (fútil e demagógica) de que vale tudo desemboca no caricato ou esquizofrênico, visto que nenhum dos defensores do "está bom de qualquer jeito" teria peito para escrever algo como "A polícia tinha preso todos os bandidos" ou "O delegado tinha solto os suspeitos".
Um caso que merece destaque é o de formas como "Tinha chego", "Tinha compro", cada vez mais comuns no linguajar de pessoas de pouca escolaridade. De onde vêm essas formas? A explicação parece simples: como a forma irregular dos particípios duplos muitas vezes coincide com a primeira pessoa do singular do presente do indicativo (caso de "trago", "salvo" etc.), o falante, por associação, acaba usando o mesmo processo para chegar a "tinha chego", "tinha compro", que já ouvi muitas vezes e que já foram objeto de perguntas em muitas das minhas palestras Brasil afora.
Que fique claro: formas como "tinha aceito" e "tinha entregue" já frequentam os registros formais ou semiformais, o que não ocorre com "tinha chego", "tinha trago", "tinha compro" ou "tinha falo". É isso.


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Publicado no jornal Folha de S. Paulo em 11 de novembro de 2010.

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

Para tirar a dúvida

Professor Pasquale fala do assunto do momento: presidente ou presidenta?

PASQUALE CIPRO NETO

A presidente, a presidenta


Em alguns casos, o uso fixa como alternativas formas exclusivamente femininas, em que o "e" dá lugar a um "a"

UFA! ACABOU! Não vou dizer que tivemos a pior campanha da história porque sou velho o bastante para ter vivido outras maravilhas (a de 1989 e as do tempo da mais do que hilariante Lei Falcão, por exemplo). Discurso sobre o nada, chavões, frases feitas e cacoetes linguísticos nunca faltaram na nossa história eleitoral.
Pois bem. A eleição se foi, mas a conversa sobre a terminação da palavra que designa o cargo que Dilma Rousseff ocupará a partir de 1º de janeiro de 2011, não. Perdi a conta das entrevistas que dei a respeito do assunto. Mesmo antes do segundo turno, tive de responder qual seria a forma "correta" para designar a função que Dilma ocupará: ela seria (será) presidente ou presidenta?
O leitor habitual deste espaço sabe bem que me nego terminantemente a reduzir a conversa a algo como "esta sim, aquela não", "está certo, está errado" etc. Posto isso, vamos ao começo da história. Que têm em comum palavras como "pedinte", "agente", "fluente", "gerente", "caminhante", "dirigente" etc.? Não é difícil, é? O ponto em comum é a terminação "-nte", de origem latina. Essa terminação ocorre no particípio presente de verbos portugueses, italianos, espanhóis...
Termos como "presidente", "dirigente", "gerente", entre inúmeros outros, são iguaizinhos nas três línguas, que, é sempre bom lembrar, nasceram do mesmo ventre. E que noção indica a terminação "-nte"? A de "agente": gerente é quem gere, presidente é quem preside, dirigente é quem dirige e assim por diante.
Normalmente essas palavras têm forma fixa, isto é, são iguais para o masculino e para o feminino; o que muda é o artigo (o/a gerente, o/a dirigente, o/a pagante, o/a pedinte). Em alguns (raros) casos, o uso fixa como alternativas as formas exclusivamente femininas, em que o "e" final dá lugar a um "a". Um desses casos é o de "parenta", forma exclusivamente feminina e não obrigatória (pode-se dizer "minha parente" ou "minha parenta", por exemplo). Outro desses casos é justamente o de "presidenta": pode-se dizer "a presidente" ou "a presidenta".
A esta altura alguém talvez já esteja dizendo que, por ser a primeira presidente/a do Brasil, Dilma Rousseff tem o direito de escolher. Sem dúvida nenhuma, ela tem esse e outros direitos (e que não vá além dos direitos que de fato tem, por amor de Deus). Se ela disser que quer ser chamada de "presidenta", que seja feita a sua vontade -por que não?
"Resolvido" esse impasse, peço licença ao caro leitor para aproveitar o mote e trocar dois dedos de prosa sobre casos análogos. Vamos a um deles: o que significa "infante", palavra da mesma família de "infância"? Vamos lá: "infante" é simplesmente "aquele que não fala" (porque ainda não aprendeu a falar). Essa palavra, por sinal, é outra que é igualzinha nos três idiomas neolatinos que já mencionei (italiano, espanhol e português).
Outro caso interessante: o da palavra "fluente". Por que se diz que fulano tem inglês "fluente"? Porque "fluente" (em que também existe a terminação "-nte") é simplesmente "o que flui", ou seja, o que corre como um líquido. Assim como os líquidos fluem, a língua flui da boca de quem se expressa com facilidade.
Mais um? Vamos lá: já vimos que gerente é aquele que gere, certo? E de que verbo é a forma "gere"? Trata-se da terceira pessoa do singular do presente do indicativo de "gerir", sinônimo de "administrar", "gerenciar". Como é mesmo que se conjuga o presente do indicativo de "gerir"? Ei-lo: "eu giro, tu geres, ele/a gere..."; o presente do subjuntivo é "que eu gira, que tu giras, que ele/a gira...". E que ela gira. É isso.


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Publicado no jornal Folha de S. Paulo em 04 de novembro de 2010.