segunda-feira, 14 de julho de 2008

Traduções

Da Folha de S. Paulo, dia 13 de julho de 2008.

Palavras ao vento

Ofício de traduzir influencia não só o sucesso da obra mas também a imagem de um país diante de ideologias locais

PETER BURKE
COLUNISTA DA FOLHA

Os problemas e perigos da tradução já foram discutidos muitas vezes, e não foi preciso esperar pelo encantador filme de Sofia Coppola de 2003 para nos darmos conta do que é "perdido na tradução" [Lost in Translation, lançado no Brasil como "Encontros e Desencontros"].
O filósofo espanhol José Ortega y Gasset [1883-1955] certa vez descreveu o projeto da tradução como sendo "utópico", e, na Alemanha, Johann Gottfried Herder já tratava do assunto no final do século 18.
Herder imaginou alguém tentando traduzir a obra do poeta francês setecentista Prosper de Crébillon para a língua dos lapões, e esse experimento mental o levou a indagar se algumas idéias ou mesmo textos não seriam "unübersetzbar" -"intraduzíveis".
Neste artigo -traduzido de minha versão inglesa original- eu gostaria de examinar esses problemas a partir de um ângulo particular: o das palavras intraduzíveis.
Muitas pessoas gostam de dizer que certas palavras de suas línguas maternas são intraduzíveis. Os franceses às vezes afirmam que "esprit" [espírito], "galanterie" [galanteria] e até mesmo "politesse" [polidez] não têm equivalente reais em outros idiomas.
Os ingleses não sabem ao certo se estrangeiros compreendem o que eles querem dizer quando falam num "sportsman" [esportista, pessoa com espírito esportivo] ou "gentleman" [gentil-homem, cavalheiro]. No caso do alemão, vêm à mente termos como "geist", suspenso no espaço lingüístico em algum lugar entre "espírito", "mente" e "cultura".
Em português, palavras como "saudade", "jeitinho", "malandro", "sacanagem" e "safadeza" criam problemas especiais para aqueles que gostariam de traduzi-las.

Saudade
Afirmações desse tipo não devem ser aceitas incondicionalmente. Em russo e em turco, assim como no português, um dos termos dos quais mais comumente se alega que é intraduzível -"saudade", "toska" ou "hüzun" (uma das palavras favoritas do escritor turco Orhan Pamuk)- significa algo como "nostalgia", "anseio" ou "melancolia".
Talvez seja mais exato dizer que determinadas palavras são especialmente difíceis traduzir para outras línguas.

Mestiço
A palavra "mestiço", por exemplo, não é fácil de traduzir ao inglês, pois aparentes equivalentes como "half-breed" ou "half-caste" soam pejorativos -resíduos lingüísticos de preconceitos antigos. Mesmo assim, essas afirmações sobre intraduzibilidade têm, sim, algo de importante a nos revelar sobre os valores das diferentes culturas em que são feitas.
Foi por essa razão que a escritora russa expatriada Svetlana Boym pediu recentemente um "Dicionário de Intraduzíveis", enquanto o narrador de "Shame" [Vergonha, 1983], romance do anglo-indiano Salman Rushdie, que passou sua vida na fronteira entre culturas e línguas, observa que, "para decifrar uma sociedade, observe suas palavras intraduzíveis".
Entre essas palavras, aprende o leitor, está "sharam", um termo em urdu que, segundo nos é dito, não é adequadamente traduzido por "vergonha".
Para serem compreendidas por estrangeiros, palavras desse tipo requerem uma tradução não apenas lingüística, mas também aquilo que hoje é conhecido como "tradução cultural".
O sociólogo húngaro Karl Mannheim [1893-1947], que, como Rushdie, viveu na fronteira entre culturas e línguas -depois de refugiar-se na Grã-Bretanha na década de 1930 e tornar-se professor na London School of Economics-, queixou-se certa vez da "urgente necessidade e grande dificuldade de traduzir uma cultura em termos de outra".

Domesticação
Essa metáfora foi adotada por antropólogos e outros acadêmicos interessados no estudo dos encontros culturais. Hoje, "tradução" exprime o que os escritores oitocentistas queriam dizer quando escreviam sobre "ocidentalizar" ou "anglicizar" ou Gilberto Freyre, quando falava em "abrasileirar" ou "tropicalizar".
Poderíamos falar igualmente bem em "domesticar", mas a metáfora da tradução possui a vantagem de nos lembrar da importância da língua nos encontros e nos intercâmbios culturais. Tome-se o caso, bastante comum nos últimos dois séculos da história mundial, de uma cultura em que alguns indivíduos que exercem liderança desejam seguir modelos estrangeiros.
Foi o caso, por exemplo, no Japão após 1868, quando a restauração do poder do imperador, que durante muito tempo fora mera figura representativa, estava vinculada ao desejo da elite política de modernizar o país, adotando modelos estrangeiros.
Uma parte da elite esperava por uma monarquia constitucional ao estilo britânico, enquanto outras desejavam um sistema mais autoritário.
Foi nessa época, em 1871, que o ensaio do filósofo inglês John Stuart Mill "Sobre a Liberdade" (1859) foi traduzido ao japonês.
A tradução foi feita por Nakamura Keiu, um estudioso confuciano empregado pelo governo que se convertera ao cristianismo e era um intelectual japonês destacado da época.
Nakamura visitara a Inglaterra em 1866 e ficara impressionado pelo fato de que, em suas palavras, uma nação pequena governada por uma mulher tinha sido capaz de derrotar o antes poderoso império chinês. Ele endereçou um memorial ao imperador, "Sobre a Imitação dos Ocidentais", e traduziu "Self-Help" (Auto-Ajuda), um manual para o sucesso escrito por outro inglês vitoriano, Samuel Smiles.
As conseqüências que se seguiram à publicação da tradução de Nakamura ilustram com clareza especial o problema do que Roberto Schwarz, famosamente, já descreveu como "idéias fora do lugar". Um dos problemas mais sérios para o tradutor do ensaio de Mills era a ausência, no japonês, de um termo equivalente ao inglês "liberty" (liberdade).
Algumas pessoas usavam a palavra inglesa, pronunciando-a "riberuchi", ou optavam por "freedom", que pronunciavam "furidomi".
Mas o tradutor optou pelo termo japonês tradicional "jiyu". A decisão de Nakamura teve a vantagem de fazer o conceito inglês parecer menos exótico, mais fácil de assimilar. Seu livro popularizou-se rapidamente, vendendo milhares de cópias.

Formação de elite
O preço da decisão tomada por Nakamura Keiu foi que os leitores de sua tradução provavelmente entenderam "jiyu" em termos de suas associações tradicionais negativas, por exemplo com voluntariosidade e também com egoísmo.
O resultado lingüístico do debate em torno da tradução da palavra "liberty" pode ter afetado o resultado político do debate sobre a nova Constituição japonesa, algo que encorajou a elite em sua opção coletiva por uma forma de monarquia menos autoritária.
Uma moral dessa história é que os tradutores carregam uma responsabilidade pesada, pois suas escolhas em termos de palavras podem ter conseqüências sérias.
Mesmo assim, o ônus não cabe unicamente a eles. O estudo dos intercâmbios culturais e da tradução cultural sugere que, quanto maior a distância entre duas culturas e, especialmente, entre seus valores fundamentais, mais difícil se torna a tarefa do tradutor.
Além de certo ponto, traduzir se converte em "Missão Impossível".


PETER BURKE é historiador inglês, autor de "O Que É História Cultural?" (ed. Zahar). Escreve na seção "Autores", do Mais!.
Tradução de Clara Allain.

quinta-feira, 10 de julho de 2008

Inculta e bela

Da Folha de São Paulo de hoje:

PASQUALE CIPRO NETO

"Lugar qualquer (em) que não exista..."

No dia-a-dia, quem é que não diz algo como "Os países que eu fui", "A rua que eu moro" ou "A roupa que eu estava"?

EDSON TRINDADE COMPÔS "Gostava Tanto de Você", um dos tantos sucessos de Tim Maia. Diz a letra: "Pensei até em me mudar / Lugar qualquer que não exista / O pensamento em você / E eu gostava tanto de você...".
Nas questões discursivas dos mais importantes vestibulares e concursos públicos do país, é comum a exigência da noção de que determinados procedimentos podem ser comuns em certos registros lingüísticos e inexistentes em outros. Trocando em miúdos, é comum, por exemplo, que se peça ao candidato que aponte as marcas típicas da linguagem coloquial presentes num texto. Não raro, pede-se também a troca de registro, isto é, pede-se que se reescreva o texto adaptando-o à "modalidade escrita da língua".
Nesse território, a canção de Trindade é prato cheio. O trecho "lugar qualquer que não exista o pensamento em você" apresenta um procedimento típico da linguagem oral -o emprego do pronome relativo "que" sem a preposição "em" ("em que não exista"). No dia-a-dia, quem é que não diz algo como "A rua que eu moro", "Os países que eu fui", "A roupa que eu estava ontem" etc.?
Se a letra de Trindade fizesse parte de uma questão em que se pedisse o que já mencionei e, também, que se justificasse a alteração feita, seria necessário dizer de onde vem esse "em". Esse "em" vem do verbo "existir" (algo existe em algum lugar).
Pois não é que, quando gravou (lindamente) a canção de Trindade, a paraense Leila Pinheiro adequou a letra ao padrão formal da linguagem? Pode ouvir. Com arranjo mais lento e interpretação comovida e comovente, Leila Pinheiro diz "lugar qualquer em que não exista o pensamento em você".
Pois é aí que entra a velha história do guarda-roupa lingüístico. Tim preferiu uma roupa; Leila, outra. Ambos têm razão, desde que se observe: a) o fato de que o que é comum num determinado registro pode não ser em outro; b) a "roupa" deve ser adequada à situação.
Nesta semana, tive a honra de entrevistar, para o "Nossa Língua", o professor de língua portuguesa José Carlos de Azeredo, da Uerj.
Trocamos duas palavras sobre o pronome "cujo", que alguns arautos da pós-modernidade lingüística dão como "morto", razão pela qual querem que o dito-cujo seja banido das aulas de língua materna. Azeredo e eu discordamos radicalmente dessa sentença de morte. Pois bem. Como sabemos que nem de longe o pronome "cujo" deixou de freqüentar as variedades formais da língua, sobretudo na escrita, convém saber que construções como "Aquela moça, que o pai foi processado por desvio de dinheiro público...", que usamos no dia-a-dia, na linguagem oral, espontânea, assumem outra forma na língua culta. Nesse caso, cabe o relativo "cujo", que expressa relação de posse (a moça tem pai; o pai é dela): "Aquela moça, cujo pai foi processado por desvio de...".
E se se quisesse dizer que todos confiavam no pai da moça? Vamos pensar: a) a forma "no" resulta de "em + o"; b) se alguém confia, confia "em"; c) o pai é da moça, é dela. Pois lá vai a frase, adequada ao padrão formal: "Aquela moça, em cujo pai todos confiavam...". "Em cujo pai?" Em se tratando de linguagem formal, sim, "em cujo pai". E sem "o" depois de "cujo". É isso.

inculta@uol.com.br