quinta-feira, 19 de maio de 2011

A língua em debate no jornal Zero Hora

Jornal Zero Hora de hoje (edição 16704, link aqui) traz excelente material e divergentes opiniões sobre a polêmica do livro do MEC que "ensinaria a escrever errado". Nota 10, ZH!

A LÍNGUA EM DEBATE

O certo e o errado em discussão

Ao apresentar e defender construções como “os livro” e “os peixe” em um livro didático como “variedades de fala popular”, o Ministério da Educação (MEC) causou polêmica entre educadores e especialistas. Após o repúdio inicial, porém, aparecem defensores da escolha do MEC.

Como a obra Por uma vida melhor, integrante da coleção Viver, Aprender, é destinada aos alunos do Ensino de Jovens e Adultos (EJA), há quem defenda a abordagem como uma forma de atrair esse nicho lidando com mecanismos de autoestima e valorizando o modo como eles se comunicam. Em outra ponta, alguns professores da Gramática se ofendem em ver um objeto de estudo dos alunos com erros de concordância.

Ontem, a Ação Educativa, organização responsável pela elaboração do material, defendeu que o livro não ensina erros, nem deixa de ensinar a norma culta, apenas indica que existem “outras variedades diferentes dessa”. Vera Masagão Ribeiro, coordenadora-geral da entidade, diz que jamais imaginou tanto rebuliço com a obra que a equipe dela produziu e foi distribuída a mais de 4 mil escolas brasileiras. No Rio Grande do Sul, a obra foi aprovada em setembro pelos responsáveis pelo EJA, mas a secretaria da Educação não sabe precisar quantas unidades utilizam o material.

Vera afirma que os exemplares foram mandados para dezenas de doutores em Educação do país antes de serem encaminhados ao MEC, unânimes na avaliação positiva. Vera admite, entretanto, que uma frase que outra pode mesmo ter sido colocada indevidamente:

– Existem algumas frases que até pode ser que venhamos a nos arrepender daqui a três anos, como aquele trecho: “mas eu posso falar ‘os livro’? É claro que pode”. De todo o jeito, é apenas uma passagem pinçada dentro de uma obra que está toda correta e que não foge à norma culta – destaca Vera.

A questão de explicitar que há diferenças entre a forma escrita e a falada deve ser estimulada, de acordo com especialistas.

Uso na Educação Básica é questionado

Para o professor Luiz Carlos Schwindt, doutor em Linguística e membro do projeto de Variação Linguística Urbana no sul do país (Varsul), o maior defeito é tê-la publicado em um livro didático.

– Não vejo qualquer incorreção nas informações do capítulo em questão. Só acho que é mais adequado deixar essas questões para serem tratadas pelo professor de português do que para estar em um livro de Educação Básica. O livro deve conter apenas a norma culta e o docente deve estar preparado e consciente para lidar com as diversidades linguísticas – aponta Schwindt.

Em meio ao debate, se levantou o temor de que a escrita fosse adaptada à fala das ruas. Com isso, manifestações como “os pé” e “os carro amarelo” poderiam ser incorporados à norma culta. Exemplos na história existem aos montes. A palavra “você” mesmo já foi “vossa mercê” no passado. E se daqui a algumas décadas elas tomarem conta?

O professor de Literatura da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e escritor Luís Augusto Fischer explica que realmente há transformações ao longo dos tempos, mas que da maneira como a sociedade está composta agora, isso não seria muito fácil de ocorrer:

– Originalmente, o português era a forma inculta de falar latim. Depois virou a língua do estado nacional. Com o passar dos anos se tornou uma língua decente. O acúmulo de material escrito maior do que jamais houve impede, entretanto, que modificações tão radicais sejam adotadas. Uma coisa é criar uma língua em 1540, outra é fazer isso em 2020.

kamila.almeida@zerohora.com.br

KAMILA ALMEIDA

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19 de maio de 2011 | N° 16704

PARA PENSAR

Susto na gramática

Tu vai sair para almoçar hoje?. Quase todo mundo já usou essa expressão em uma conversa, mesmo sabendo que a conjugação correta do verbo seria tu vais.

É comum ouvir as pessoas dizerem que vão tomar um “copo de leiti” – a letra “e” no final de “leite” é transformada, na oralidade, em “i”.

São erros, adaptações ou jeitos de falar próprios dos brasileiros? Debati o tema ontem com os professores da UFRGS Luciana Piccoli e Pedro Garcez (assista à íntegra da nossa conversa e leia o capítulo do livro que gerou a polêmica emwww.zerohora.com). Para Garcez, não são erros, são “formas socialmente estabelecidas que fazem parte do português brasileiro”. O especialista argumenta, inclusive, que esses dois exemplos citados são mais aceitos que outros estigmatizados, como “pranta” no lugar de “planta”.

Encontrar uma forma não prevista na gramática como uma possibilidade adequada em um livro distribuído pelo Ministério da Educação assusta, e a primeira reação é acreditar que os estudantes vão ficar orgulhosos de falar errado ou simplesmente vão repetir as incorreções no dia a dia.

Esse susto, que desencadeou um debate nacional interessante nos últimos dias, faz sentido. Mas também faz sentido pensar que a reflexão sobre as diferenças entre falar e escrever podem ser tema de debate na sala de aula, acreditando que os alunos têm condições de compreender a forma gramatical da norma escrita e descobrir o limite de uso das formas orais. E aí, novamente, o professor é a figura-chave: é ele quem precisa orientar o estudante para entender essas peculiaridades e, assim, adquirir consciência sobre a linguagem falada e a escrita.

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ENTREVISTA

“Reconhecer a variedade é legítimo”

Ana Maria Stahl Zilles, doutora em Linguística

Zero Hora – Qual é a sua opinião sobre a polêmica que se estabeleceu?

Ana Maria Stahl Zilles – A polêmica não tem fundamento. Ela está estabelecida nas informações do primeiro capítulo do livro, que é sobre a diferença entre escrever e falar. Ele é muito adequado por que diz que a escrita é diferente da fala e que na fala existe muito mais variação do que na escrita. Faz a distinção entre a variedade popular e a variedade culta, e mostra que elas têm sistemas de concordâncias diferentes. Eles dizem que na variedade popular basta que o primeiro termo esteja no plural para indicar mais de um referente. Quando os autores explicam que é possível falar “os peixe”, não estão querendo dizer que esse é o certo, nem vão ensinar a pessoa a escrever errado. Isso é como as pessoas já falam. A escola tem é que ensinar a norma culta e o livro faz isso. O objetivo do capítulo é apenas deixar claro que uma coisa é falar e outra é escrever.

ZH – Existe preconceito contra quem fala errado?

Ana Maria – Existem pesquisas feitas nos projetos de estudo de variação linguística que entrevistaram as mesmas pessoas em intervalos de 15 e 20 anos. Se observou que existe um movimento dos falantes se aproximando da norma culta. A população brasileira está com acesso universal à escola e tendo possibilidade de aprender a norma culta. Esse reconhecimento de que existe variação é essencial para que ela não se sinta um ser excluído da escola. Se um professor diz para um aluno que o modo que ele, os pais dele e os amigos dele falam está errado, ele vai se sentir entre dois mundos.

ZH – Esse tipo de abordagem se justifica em determinados públicos, como alunos do EJA (Educação para Jovens e Adultos)?

Ana Maria – O professor vai receber alunos que estão tentando recuperar o tempo perdido. Acho que faz todo o sentido reconhecer junto com o aluno que a variedade que ele fala existe e é legítima. Eu não estou dizendo certa. É o meio de expressão da maioria dos falantes do Brasil. Faz muito mais sentido acolher o aluno por que é assim que ele construiu a própria identidade no mundo.

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ENTREVISTA

“Dizer que é errado não é preconceito”

Cláudio Moreno, doutor em Letras

Zero Hora – Qual é a sua opinião sobre a polêmica que se estabeleceu?

Cláudio Moreno – O livro tem que ser proibido e as pessoas devem ser punidas. Esse livro chamou a atenção por que é a primeira vez que aparece em público uma coisa que nós, professores de português, enfrentamos há anos: uma falsa teoria de que falar em norma culta é preconceito linguístico. Sempre foi pregado que é necessário valorizar as variantes linguísticas. O público em geral não sabia disso. A Linguística estuda a língua humana. Do ponto de vista dela não tem certo ou errado. Vai estudar como as pessoas se comunicam, mas isso não tem nada a ver com o que deve ser ensinado na sala de aula. A escola tem que escolher o que vai ensinar e ela seleciona aquilo que o jovem não aprenderá em lugar algum, que não seja na escola. O que eles estão dizendo não é para dizer em um livro para estudantes. O aluno que está lá não está para aprender teoria linguística, mas para saber como faz a concordância correta do verbo. Não tem desculpa. Ele está inadequado.

ZH – Existe preconceito contra quem fala errado?

Moreno – Tem uma expressão que me incomoda profundamente: preconceito linguístico. Por que preconceito? Se eu disser que uma pessoa está pintando uma porta errada é preconceito? Não, estou avisando que está errado. O problema é que eles se colocam em uma posição utópica. Esse é o maior câncer no ensino do português e é por isso que o português está tão ruim. Tem milhares de modalidades de falar e escrever, todas válidas. As pessoas vivem e morrem com aquela linguagem, mas a escola não tem nada a ver com isso. Ela tem de ensinar uma que é única, que faz todos serem da mesma comunidade linguística. Segundo eles, isso é escolhido pela burguesia, que decide qual é a melhor e exclui a que é do povo. Mas a do povo é incompleta. Os ricos adotaram a norma culta por que é melhor.

ZH – Esse tipo de abordagem se justifica em determinados públicos, como alunos do EJA (Educação para Jovens e Adultos)?

Moreno – Eles tratam aqueles que fazem o EJA como débeis mentais. Ele não é um coitado. É um cidadão que trabalha. Eles têm a ideia de que o estudante do EJA fica completamente bloqueado pela autoestima baixa e, vendo que o modo como ele fala também está bom, não vai aceitar aprender a língua culta. Isso é uma asneira.



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